quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Guerra às drogas encarcera mais negros do que apartheid - Maria Lucia Karam



A juíza aposentada do Rio de Janeiro, Maria Lucia Karam, afirma que a criminalização do usuário que ainda persiste no Brasil viola declarações internacionais e e a própria Constituição brasileira. Karam faz parte da Apilcação da Lei contra a Proibição (Leap, na sigla em inglês). Segundo a juíza, a guerra às drogas nos EUA - que serve de referência para outros países - já propicia um quadro de encarceramento da população negra que ultrapassa os indíces do regime do apartheid na África do Sul.

Judicialmente, o usuário de drogas ainda é tratado como criminoso? Na sua opinião, quais mudanças na legislação poderiam tornar o relacionamento do judiciário com o usuário mais humano?

Maria Lucia Karam: Sim, o usuário de drogas ilícitas ainda é tratado como criminoso no Brasil. A Lei 11.343/2006 – a vigente lei brasileira em matéria de drogas – ilegitimamente criminaliza a posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas em seu artigo 28, ali prevendo penas de advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programa ou curso educativo e, em caso de descumprimento, admoestação e multa. A Lei 11.343/2006 apenas afastou a previsão de pena privativa de liberdade.
Não se trata de tornar o relacionamento do Poder Judiciário com o usuário mais humano. Na realidade, o mero fato de usar drogas ilícitas não deveria levar ninguém a se relacionar com o Poder Judiciário. A criminalização da posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas viola princípios garantidores de direitos fundamentais inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, aí naturalmente incluída a Constituição Federal brasileira. A simples posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam um perigo concreto, direto e imediato para terceiros são condutas que dizem respeito unicamente ao indivíduo que as realiza, à sua liberdade, às suas opções pessoais. Condutas dessa natureza não podem sofrer nenhuma intervenção do Estado, não podem sofrer nenhuma sanção. Em uma democracia, a liberdade do indivíduo só pode sofrer restrições quando sua conduta atinja direta e concretamente direitos de terceiros.

A guerra às drogas tem um cunho social? Isto é, ela atinge majoritariamente os mais pobres? Se sim, a sra. considera que essa é uma estratégia pensada propositadamente para atingir os mais pobres?

A “guerra às drogas” não se dirige propriamente contra as drogas. Como qualquer outra guerra, dirige-se sim contra pessoas – nesse caso, os produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas. Como acontece com qualquer intervenção do sistema penal, os mais atingidos pela repressão são – e sempre serão – os mais vulneráveis econômica e socialmente, os desprovidos de riquezas, os desprovidos de poder.
No Brasil, os mais atingidos são os muitos meninos, que, sem oportunidades e sem perspectivas de uma vida melhor, são identificados como “traficantes”, morrendo e matando, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham. Enfrentam a polícia nos confrontos regulares ou irregulares; enfrentam os delatores; enfrentam os concorrentes de seu negócio. Devem se mostrar corajosos; precisam assegurar seus lucros efêmeros, seus pequenos poderes, suas vidas. Não vivem muito e, logo, são substituídos por outros meninos igualmente sem esperanças. Os que sobrevivem, superlotam as prisões brasileiras.
Nos EUA, pesquisas apontam que, embora somente 13,5% de todos os usuários e “traficantes” de drogas naquele país sejam negros, 37% dos capturados por violação a leis de drogas são negros; 60% em prisões estaduais por crimes relacionados a drogas são negros; 81% dos acusados por violações a leis federais relativas a drogas são negros. Os EUA encarceram 1.009 pessoas por cem mil habitantes adultos. Se considerados os homens brancos, são 948 por cem mil habitantes adultos. Se considerados os homens negros, são 6.667 por cem mil habitantes. Sob o regime mais racista da história moderna, em 1993 – sob o apartheid na África do Sul – a proporção era de 851 negros encarcerados por cem mil habitantes. Como ressalta Jack A. Cole, diretor da Law Enforcement Against Prohibition-LEAP – organização internacional que reúne policiais, juízes, promotores, agentes penitenciários e da qual orgulhosamente faço parte – é o racismo que conduz a “guerra às drogas” nos EUA.
Na Europa, a mesma desproporção se manifesta em relação aos imigrantes vindos de países pobres.
A função da “guerra às drogas” – ou do sistema penal em geral – de criminalização dos mais vulneráveis e de conseqüente conservação e reprodução de estruturas de dominação não é exatamente uma estratégia pensada propositadamente pelo político A ou B; é sim algo inerente ao exercício do sempre violento, danoso e doloroso poder punitivo.

As experiências de legalização/descriminalização das drogas têm ajudado a diminuir a violência em função do tráfico?

As experiências menos repressivas na atualidade limitam-se à descriminalização da posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas. A descriminalização da posse para uso pessoal das drogas ilícitas é um imperativo derivado da necessária observância dos princípios garantidores dos direitos fundamentais inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas. A posse de drogas para uso pessoal, como antes mencionado, é uma conduta que não atinge concretamente nenhum direito de terceiros e, portanto, não pode ser objeto de qualquer intervenção do Estado.
Mas essa imperativa descriminalização não é suficiente. Não haverá nenhuma mudança significativa, especialmente no que concerne à violência, a não ser que a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas possam se desenvolver em um ambiente de legalidade. Para afastar os riscos e os danos da proibição, para pôr fim à violência resultante da ilegalidade, é preciso legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas.
A legalização da produção e do comércio de todas as drogas afastará a violência que hoje acompanha tais atividades, pois essa violência só se faz presente porque o mercado é ilegal. ão são as drogas que causam violência. A produção e o comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas. É a ilegalidade que cria a violência. A produção e o comércio de drogas só se fazem acompanhar de armas e de violência quando se desenvolvem em um mercado ilegal. A violência não provem apenas dos enfrentamentos com as forças policiais, da impossibilidade de resolução legal dos conflitos, ou do estímulo à circulação de armas. Além disso, há a diferenciação, o estigma, a demonização, a hostilidade, a exclusão, derivados da própria ideia de crime, a sempre gerar violência, seja da parte de agentes policiais, seja da parte daqueles a quem é atribuído o papel do “criminoso” – ou pior, do “inimigo”.
A produção e o comércio de álcool ou de tabaco se desenvolvem sem violência – disputas de mercado, cobranças de dívidas, tudo se faz sem violência. Por que é diferente na produção e no comércio de maconha ou cocaína? A óbvia diferença está na proibição, na irracional política antidrogas, na insana e sanguinária “guerra às drogas”.
Aliás, o exemplo de legalização que podemos invocar é o que ocorreu nos EUA na década de 1930, com o fim da proibição do álcool. O proibicionismo produziu e inseriu no mercado produtor e distribuidor do álcool empresas criminalizadas; fortaleceu a máfia de Al Capone e seus companheiros; provocou a violência que caracterizou especialmente a cidade de Chicago daquele tempo. Com o fim da chamada Lei Seca (o Volstead Act), o mercado do álcool se normalizou e aquela violência que o cercava simplesmente desapareceu.

Material obtido no site: Legalize Boldo

terça-feira, 14 de dezembro de 2010


10 razões para legalizar as drogas

O texto abaixo, publicado no Le Monde Diplomadique Brasil de setembro/2009, foi escrito por um membro da Inteligência Criminal da Scotland Yard e desenvolve de maneira bem clara os motivos que fazem da legalização das drogas uma necessidade gritante para a sociedade de hoje, e que sempre esbarra em preconceitos e falta de informação. Leitura simples e fundamental para embasar os argumentos de quem sabe que a legalização é a única ação capaz de mudar o impacto negativo resultante do tráfico em nossa sociedade.

10 razões para legalizar as drogas
por John Grieve

1 – ENCARAR O VERDADEIRO PROBLEMA
Os burocratas que constroem as políticas sobre drogas têm usado a proibição como uma cortina de fumaça para evitar encarar os fatores sociais e econômicos que levam as pessoas a usar drogas. A maior parte do uso ilegal e do uso legal de drogas é recreacional. A pobreza e o desespero estão na raiz da maioria do uso problemático da droga, e somente dirigindo-se a estas causas fundamentais é que poderemos esperar diminuir significativamente o número de usuários problemáticos.

2 – ELIMINAR O MERCADO DO TRÁFICO
O mercado de drogas é comandado pela demanda e milhões de pessoas demandam drogas atualmente ilegais. Se a produção, suprimento e uso de algumas drogas são criminalizados, cria-se um vazio que é preenchido pelo crime organizado. Os lucros neste mercado são de bilhões de dólares. A legalização força o crime organizado a sair do comércio de drogas, acaba com sua renda e permite-nos regular e controlar o mercado (isto é prescrever, licenciar, controle de venda a menores, regulação de propaganda, etc..).

3 – REDUÇÃO DRÁSTICA DO CRIME
O preço de drogas ilegais é determinado por um mercado de alta demanda e não regulado. Usar drogas ilegais é muito caro. Isto significa que alguns usuários dependentes recorrem ao roubo para conseguir dinheiro (corresponde a 50% do crime contra a propriedade na Inglaterra e é estimado em 5 bilhões de dólares por ano). A maioria da violência associada com o negócio ilegal da droga é causada por sua ilegalidade. A legalização permitiria regular o mercado e determinar um preço muito mais baixo acabando com a necessidade dos usuários de roubar para conseguir dinheiro.Nosso sistema judiciário seria aliviado e o número de pessoas em prisões seria reduzido drasticamente, economizando-se bilhões de dólares. Por causa do preço baixo, os fumantes de cigarro não têm que roubar para manter seu hábito. Não há também violência associada com o mercado de tabaco legal.

4 – USUÁRIOS DE DROGA ESTÃO AUMENTANDO
As pesquisas na Inglaterra mostram que quase a metade de todos os adolescentes entre 15 e 16 anos já usou uma droga ilegal. Cerca de 1,5 milhão de pessoas usa ecstasy todo fim de semana. Entre os jovens, o uso ilegal da droga é visto como normal. Intensificar a guerra contra as drogas não está reduzindo a demanda. Na Holanda, onde as leis do uso da maconha são muito menos repressivas, o seu uso entre os jovens é o mais baixo da Europa. A legalização aceita que o uso da droga é normal e que é uma questão social e não uma questão de justiça criminal. Cabe a nós decidirmos como vamos lidar com isto. Em 1970, na Inglaterra, havia 9.000 condenações ou advertências por uso de droga e 15% de novas pessoas tinham usado uma droga ilegal. Em 1995 os números eram de 94.000 e 45%. A proibição não funciona.

5 – POSSIBILITAR O ACESSO A INFORMAÇÃO VERDADEIRA E A RIQUEZA DA EDUCAÇÃO
Um mundo de desinformação sobre drogas e uso de drogas é engendrado pelos ignorantes e preconceituosos burocratas da política e por alguns meios de comunicação que vendem mitos e mentiras para benefício próprio. Isto cria muito dos riscos e dos perigos associados com o uso de drogas. A legalização ajudaria a disseminar informação aberta, honesta e verdadeira aos usuários e aos não-usuários para ajudar-lhes a tomar decisões de usar ou não usar e de como usar. Poderíamos começar a pesquisar novamente as drogas atualmente ilícitas e descobrir todos seus usos e efeitos – positivos e negativos.

6 – TORNAR O USO MAIS SEGURO PARA O USUÁRIO
A proibição conduziu à estigmatização e marginalização dos usuários de drogas. Os países que adotam políticas ultra-proibicionistas têm taxas muito elevadas de infecção por HIV entre usuários de drogas injetáveis. As taxas de hepatite C entre os usuários no Reino Unido estão aumentando substancialmente. No Reino Unido, nos anos 80, agulhas limpas para usuários e instrução sobre sexo seguro para jovens foram disponibilizados em resposta ao medo do HIV. As políticas de redução de danos estão em oposição direta às leis de proibição.

7 – RESTAURAR NOSSOS DIREITOS E RESPONSABILIDADES
A proibição criminaliza desnecessariamente milhões de pessoas que, não fosse isso, seriam pessoas normalmente obedientes às leis. A proibição tira das mãos dos que constroem as políticas públicas a responsabilidade da distribuição de drogas que circulam no mercado paralelo e transfere este poder na maioria das vezes para traficantes violentos. A legalização restauraria o direito de se usar drogas responsavelmente e permitiria o controle e regulação para proteger os mais vulneráveis.

8 – RAÇA E DROGAS
As pessoas da raça negra correm dez vezes mais risco de serem presas por uso de drogas que as pessoas brancas. As prisões por uso de droga são notoriamente discriminatórias do ponto de vista social, alvejando facilmente um grupo étnico particular. A proibição promoveu este estereótipo das pessoas negras. A legalização remove um conjunto inteiro de leis que são usadas desproporcionalmente no contato de pessoas negras com o sistema criminal da justiça. Ajudaria a reverter o número desproporcional de pessoas negras condenadas por uso de droga nas prisões.

9 – IMPLICAÇÕES GLOBAIS
O mercado de drogas ilegais representa cerca de 8% de todo o comércio mundial (em torno de 600 bilhões de dólares ano). Países inteiros são comandados sob a influência, que corrompe, dos cartéis das drogas. A proibição permite também que os países desenvolvidos mantenham um amplo poder político sobre as nações que são produtoras com o patrocínio de programas de controle das drogas. A legalização devolveria o dinheiro perdido para a economia formal, gerando impostos, e diminuiria o alto nível de corrupção. Removeria também uma ferramenta de interferência política das nações estrangeiras sobre as nações produtoras.

10 – A PROIBIÇÃO NÃO FUNCIONA
Não existe nenhuma evidência para mostrar que a proibição esteja resolvendo o problema. A pergunta que devemos nos fazer é: Quais são os benefícios de criminalizar qualquer droga? Se após analisarmos todas as evidências disponíveis concluirmos que os males superam os benefícios, então temos de procurar uma política alternativa. A legalização não é a cura para tudo, mas nos permite encarar os problemas criados com o uso da droga e os problemas criados pela proibição. É chegada a hora de uma política pragmática e eficaz sobre drogas.

http://diplomatique.uol.com.br/editorial.php?edicao=2

Material obtido no site: Legalize o Boldo